Política Linguística
O Alto Rio Negro é a região mais plurilíngue do continente americano, com um sistema ecolingüístico de 23 diferentes línguas indígenas de cinco troncos lingüísticos diferentes: Tupi (Nheẽgatu), Tukano Oriental (Tukano, Tuyuka, Desana, Wanano, Piratapuya, etc.), Aruak (Baniwa, Kuripako, Tariano, Werekena) e Maku (Nadëb, Daw, Yuhup, Hupda), Yanomami, além de duas línguas da família românica, o Português e o Espanhol.
Além disso, o Alto Rio Negro é o único lugar do mundo em que as regras de matrimônio se baseiam na chamada EXOGAMIA LINGUÍSTICA, isto é, na obrigatoriedade do casamento com mulher falante de outra língua. Este tipo de regra matrimonial conduz a indivíduos bilíngues precoces coordenados ou, mais freqüentemente ainda, à proficiência em várias línguas, dado que numa comunidade há falantes potenciais de várias línguas (de 3 ou 4 até 12 línguas diferentes).
A legislação brasileira (Constituição Federal, LDB, Resolução 03 do CNE, etc.) e internacional (Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, etc.) reconhecem aos povos minorizados em geral e aos indígenas em particular o direito de uso das suas línguas próprias nos processos educacionais em todos os níveis escolares. Além disso, São Gabriel da Cachoeira goza de uma legislação municipal própria sobre o assunto, expressa nas Leis nº 145 de dezembro de 2002 e nº 210 de outubro de 2006, da Câmara dos Vereadores do Município de São Gabriel da Cachoeira, que CO-OFICIALIZA E REGULAMENTA AS LÍNGUAS TUKANO, NHEẼGATU E BANIWA, atribuindo-lhes estatuto de uso obrigatório no sistema educacional, na mídia e no atendimento público aos cidadãos (95% dos cidadãos de São Gabriel da Cachoeira são indígenas).
Uma destas três línguas co-oficializadas é dominada por praticamente todos os cidadãos indígenas do município, independente de falarem também outra língua da sua própria etnia, já que estas três grandes línguas são línguas veiculares de territórios linguísticos específicos: O Tukano é a língua veicular da bacia do Uaupés, incluindo os afluentes Tiquié, Papuri e Umari; o Nheẽgatu é a língua veicular do Rio Negro a jusante de Santa Izabel até Cucuí, na fronteira com a Venezuela, incluindo-se ainda o rio Xié até Anamoim, o baixo curso do Içana e o rio Cubate; o Baniwa, finalmente, domina o médio e o alto curso do rio Içana e o rio Aiari.
A política de co-oficialização destas três grandes línguas veiculares beneficia, portanto, todos os cidadãos indígenas, e não somente os das três etnias ‘donas’ das três línguas. Diga-se de passagem que a própria Lei nº 145/2002, regulamentada pela Lei nº 210/2006, prevê o direito dos outros povos de disporem de educação básica nas suas línguas étnicas, para evitar e mesmo reverter os processos de colonização e de deslocamento pelo Nheengatu iniciados na década de 40 e ainda em curso em alguns contextos sociolinguísticos.
Trata-se de uma política linguística de promoção das línguas veiculares co-oficiais, e de sua equipagem para que possam ocupar funções cada vez mais sofisticadas no mundo do letramento e da administração pública.
A UFAM com esta licenciatura, mostra sua capacidade de perceber os contextos sociopolíticos e socioeducacionais em que trabalha, e soma esforços com a Secretaria Municipal da Educação e com a Federação das Organizações Indígena (FOIRN), parceiras deste esforço.
A visão pedagógica do EvP é complementar à política linguística perseguida pelo curso, que é a de garantir soluções plurilíngues para uma região plurilíngue, garantindo ao mesmo tempo que as línguas indígenas não só não sejam deslocadas pelo Português nos seus ambientes tradicionais de uso, mas ainda que sejam potencializadas como línguas de trabalho, como línguas de produção científica e como línguas de administração, para citar apenas alguns dos seus novos usos, em conformidade com a legislação vigente.
Por isso, uma das tarefas da licenciatura é a da EQUIPAGEM das línguas indígenas envolvidas tanto como línguas de trabalho (as línguas de todas as etnias presentes no curso, e na qual os alunos trabalharão nas suas respectivas comunidades) como muito especialmente das línguas co-oficiais, e que na licenciatura tem caráter de Língua de Instrução. A equipagem lingüística se dá através da criação de INSTRUMENTOS LINGUÍSTICOS capazes de propiciar que estas línguas possam ser usadas nos mais variados contextos exigidos pelas comunidades de falantes.
Portanto, salienta-se que cada língua dos povos indígenas do Rio Negro terá um papel a desempenhar na licenciatura intercultural, desenvolvida nos três polos:
• A língua de instrução, as co-oficiais em cada polo;
• As línguas de trabalho, as que são faladas/ empregadas pelos discentes sendo ou não co-oficializadas;
• Línguas não indígenas: indispensáveis para o uso em situação de contato com a sociedade nacional e outros povos, funcionando neste caso, como língua que serve para estabelecer relações de contato interétnico, com indígenas que falam línguas diferentes das do Alto Rio Negro.
Neste sentido, face ao multilinguismo da região, ao mesmo tempo que fortalece a identidade, a cultura e a organização do movimento indígena no Alto Rio Negro, através do uso das línguas co-oficializadas pela Lei Municipal nº 210/2006 como línguas de instrução, este curso busca fortalecer as demais línguas maternas que são empregadas como línguas de trabalho tanto na oralidade quanto na escrita durante o desenvolvimento das atividades acadêmico-científicas e culturais.